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Precisamos falar sobre o Kevin [Lionel Shriver]

Intrínseca 25 de junho de 2015 Aline T.K.M. Nenhum comentário


A sensação de ter algo fora do lugar, uma estranheza aqui dentro e aquele misto de sentimentos que não dá para ser resumido em uma ou duas palavras: isso tudo foi o que experimentei ao virar a última página de Precisamos falar sobre o Kevin.

Inicialmente, sabe-se apenas que há um ano e meio uma quinta-feira mudou drasticamente a vida da narradora – vida que já não lhe pertencia inteiramente nos últimos 16 anos. Numa tentativa de expurgo, Eva Katchadourian escreve ao marido como se redigisse um diário. Fala da vida do casal, da gravidez, e da chegada do primeiro filho, Kevin, o cruel protagonista daquela quinta-feira. Também coloca no papel como sempre detestou a casa enorme e quase sem portas onde passaram a viver desde a infância do filho; uma casa cujos ângulos estranhos das paredes não permitiam que nada se encaixasse direito, da mesma forma que as coisas nunca se encaixaram muito bem desde que Kevin passara a fazer parte de suas vidas.

O desabafo epistolar elucida e analisa a presença de Kevin naquela família. O bebê que berrava demais dá lugar à criança extremamente fechada, desinteressada por tudo e por todos, e de inteligência acima da média (embora fizesse questão de escondê-la). Os problemas comportamentais, a fúria constante e injustificada, e o deboche são descritos a partir de situações vividas e jamais de todo compreendidas pela mãe e pelos demais. À medida que o garoto cresce, agravam-se os dilemas e a incógnita só faz aumentar. Uma bola de neve que culmina no impensado: um daqueles episódios de massacre na escola, gênero Columbine.

Reconstruindo – ou antes desconstruindo – o passado e mesclando-o a um presente insosso e hostil, Eva traz detalhes da vida doméstica pré e pós-Kevin, despindo-se de todo pudor que pudesse ter havido anteriormente. Fala das motivações – ou da falta delas – da maternidade, do parto que veio desacompanhado de sentimento, e de uma criança que talvez nunca tenha sido verdadeiramente desejada. Ademais, é certo que uma rejeição mútua e importante marca o nascimento do garoto e de Eva como mãe: Kevin recusou seu seio desde o primeiro instante de vida.

Dona e diretora executiva de uma editora de guias de viagem para turistas low-budget, Eva passa grande parte do tempo em lugares exóticos mundo afora, avaliando hostels e descobrindo detalhes pitorescos de outras culturas. Isso tudo, claro, antes da maternidade. Independente, desde muito nova é impelida a pequenos desafios e a enfrentar seus medos. A chegada de Kevin a assusta, porém é a personalidade de Kevin o que a deixa de fato horrorizada. Sempre atormentada por aquela criança “difícil”, Eva se esforça para criar laços com o garoto, para entrar em seu mundo e compreendê-lo; ao mesmo tempo, sente-se aliviada quando não o tem por perto, além de enxergar nele a maldade e a disposição para incomodá-la. Já Franklin é um pai complacente demais, procura aproximar-se de Kevin e tenta “compensar” a aparente frieza da mãe. Mas na maior parte do tempo cega a si mesmo para os problemas que o garoto apresenta.

Num desenho intrincado qual os mapas das tantas cidades em que esteve, Eva liga os pontos e faz surgir perante nossos olhos uma história densa, que requer boa dose de sangue frio. Há dor e desespero; mas já inerte e – se é que se pode afirmá-lo completamente – conformada, a narradora-personagem acaba por manter um tom racional e analítico. Ainda assim, a tensão e os sentimentos ambíguos acompanham o leitor, e a própria Eva, durante todo o percurso.

Para além da própria trama, a genialidade de Lionel Shriver se nota especialmente na construção dos dois personagens principais, e, ainda, na maneira como Eva constrói a figura de Kevin, moldando-o física e psicologicamente para apresentá-lo ao destinatário de suas cartas, o pai que nunca havia visto o filho sob tal perspectiva. Diferentes e ao mesmo tempo tão parecidos, Eva e Kevin são hostis um com o outro, numa batalha diária e permanente. O verdadeiro país estrangeiro no qual Eva não se atreve a botar os pés, Kevin permanece desconhecido do início ao fim. Quem é esse garoto de traços armênios, olhar enviesado, um esgar de deboche num dos cantos da boca? Indiferente, apático, mas sempre às voltas quando algum acidente estranho acontece. Sabe se safar, muito embora goste do fato de saberem-no culpado, de “levar o devido crédito” por seus feitos.

De maneira fria e pungente, a autora usa da ironia ao apontar a condescendência norte-americana, além de revelar toda a podridão por trás da imagem da família perfeita, branca e burguesa. A trama, bem conduzida e sustentada, chega ao ápice e desfecho à perfeição, com suas muitas questões continuando a reverberar nas páginas e na mente de quem lê. Seria justo e correto culpar os pais? Poderia uma mãe odiar o próprio filho? De quem é a culpa, afinal?

Pois não se trata de responder a todas as perguntas, mas de descascar cada camada do passado, reviver cada parte daquele trajeto maldito e, talvez, encontrar uma pista que seja. Se a punição chega para todos, os porquês permanecem encobertos. E, tão complicado quanto nomear uma razão para aquela quinta-feira, 8 de abril de 1999, é saber onde exatamente residiu o estopim para o início de tudo aquilo. Quando e como teria sido plantada a semente de tamanha perversidade num garoto que parecia nunca querer ter vindo ao mundo.

LEIA PORQUE...
Cruel, genial, inesquecível. Precisamos falar sobre o Kevin incomoda o leitor, cutuca feridas e mexe naquilo que ninguém ousa mexer.

DA EXPERIÊNCIA...
Depois de ser arrebatada pelo filme, não achei que o livro fosse mexer ainda mais comigo. Ledo engano. Entrou para os meus favoritos e já virei fã da autora.

FEZ PENSAR EM...
O Jantar, de Herman Koch: thriller psicológico sobre jovens criminosos, valores, e a delicada relação entre pais e filhos.

QUANTO VALE?

Título: Precisamos falar sobre o Kevin
Título original: We need to talk about Kevin
Autor(a): Lionel Shriver
Tradução: Beth Vieira e Vera Ribeiro
Editora: Intrínseca
Edição: 2012 (reimpressão em 2014)
Ano da obra: 2003
Páginas: 464
Onde comprar: Fnac | Submarino

Aline T.K.M.
Criou o Livro Lab há 12 anos e se dedicar a este projeto é uma das coisas que mais ama fazer, além de estar em contato com os mais variados tipos de expressões artísticas. Tem paixão por cinema, viajar e conhecer outras culturas. Ah, e ama ler em francês!

 

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